Fui uma das fundadoras deste movimento de pais.
O caminho começou antes disso. Em 1993, a minha filha tinha acabado recentemente o tratamento oncológico e, a pouco e pouco, tudo voltava à normalidade. Nessa altura, a situação vivida nos Serviços de Oncologia Pediátrica era muito diferente daquela que encontramos hoje (ao nível do sucesso das terapêuticas, da informação disponibilizada, das condições logísticas e do apoio humano-social existente). Portanto, era sobretudo no contacto com as outras famílias que viviam ou tinham vivido uma experiência semelhante que encontrávamos os nossos modelos de esperança e as forças necessárias para continuar a lutar. Fomos tomando consciência da necessidade de uma organização de pais e fomos lançando as primeiras sementes.
Em 1994, desafiados pelo Dr. Gentil Martins, participámos no 1º Encontro Internacional das Associações de Pais de Crianças com Cancro, em Espanha. O contacto com essas organizações foi uma enorme inspiração e ajudou-nos a definir o modelo de actuação que pretendíamos em Portugal.
Com a colaboração dos quatro Serviços de Oncologia Pediátrica do país organizámos vários encontros de pais, propondo a sua adesão a este projecto. Conseguimos, logo de início, uma mobilização nacional em torno deste movimento que viria depois a dar lugar, em Outubro ainda de 1994, à constituição formal da Associação Acreditar.
E só podia ser esse o nome – ACREDITAR. Quando os nossos filhos são diagnosticados com um cancro procuramos acima de tudo razões de esperança.
Muitas vezes dei comigo a imaginar que a única solução seria fugir, fugir de tudo e de todos. Isolar-me e voltar só quando tudo estivesse resolvido, quando tudo estivesse bem. Foram momentos de enorme desespero. Mas é claro que jamais conseguiria deixar o meu filho.
Sempre que podia, no fim de um dia inteiro no hospital, deixava a minha filha entregue aos cuidados de um familiar ou amigo e, por duas ou três horas, saía com o meu marido. Íamos os dois jantar sem pressa, falávamos dos nossos medos ou não falávamos de nada. Nos dias piores, íamos ao cinema. Sempre que podíamos, tentávamos pelo menos não ter pressa e gozar o momento. Se não conseguíamos falar, tentávamos pelo menos estar próximos… Estou convencida que esses momentos nos deram a força para viver aquilo tudo.
Durante a doença do meu filho, tinha a preocupação de ouvir o que ele dizia e de “ouvir” o que ele não dizia. Muitas vezes ele não falava das suas angústias e dos seus medos porque não queria aumentar o nosso sofrimento. Por outro lado, dizia-lhe muitas vezes uma frase muito simples mas que contém a única coisa que é importante dizer: ”Adoro-te”.
Tive de fazer um enorme esforço para conseguir eu própria pronunciar a palavra cancro e associá-la à esperança que me era necessária para continuar a viver. Só quando consegui dominar os meus medos e encarar a esperança é que falei com a minha filha abertamente. Esta abertura e confiança foi sempre um traço marcante de união entre nós e deu-nos a segurança necessária para enfrentar os tratamentos.
Durante esse período, tentámos sempre revezarmo-nos para dar apoio e atenção aos nossos outros filhos. Não fugíamos às perguntas, mas tentávamos passar uma mensagem positiva e de esperança, acentuando e valorizando a importância da sua colaboração e compreensão.
Este clima de solidariedade e abertura foi muito importante para todos nós e reforçou o sentimento de sermos uma família.
Ao princípio, o regresso à escola foi um momento doloroso para a nossa filha. Ela não foi bem aceite pelas outras crianças, pelas limitações que ainda tinha e pelo seu aspecto físico (tinha ainda grandes “peladas” devido à quimioterapia).
Foi preciso preparar as outras crianças e os professores, para os motivar para o apoio e aceitação. Depois, tudo decorreu com normalidade e ela integrou-se sem problemas. Hoje em dia é uma adolescente super-saudável e “de bem” consigo e com o mundo.
O sentimento de impotência perante uma situação que me assustava, e que me sentia incapaz de controlar, levava-me muitas vezes a ter as reacções mais instintivas e primárias que até aí eu desconhecia. Veio “ao de cima” todo o instinto de sobrevivência, de “protecção da cria.” Experimentei várias vezes sentimentos de raiva e impotência quando a Maria era picada várias vezes para lhe encontrarem uma veia; quando uma enfermeira ou auxiliar falava num tom mais desabrido; quando esperava muito tempo pelos tratamentos… Nem sempre era fácil controlar estes sentimentos.
O nosso filho, aos dois anos e meio, foi para o jardim de infância ainda sem a vacinação em dia. Quisemos que a sua doença não o impedisse de seguir o percurso que havíamos traçado e que convivesse com outras crianças num ambiente propício ao seu crescimento e à sua socialização, diferente do ambiente hospitalar que conhecera antes. Hoje, no colégio que frequenta, é um menino vivaço, alegre, amigo dos colegas e das brincadeiras. Dá-se lindamente com educadoras e auxiliares. É conhecido por todos os colegas do irmão e o ai-jesus das meninas. De há uns meses a esta parte, está um verdadeiro traquinas: já partiu a cabeça e o queixo e, não que o desejemos, parece-nos que não vai ficar por aí.
A incerteza face ao futuro é uma fonte de instabilidade, que dificulta muito a nossa vida diária. O nosso filho pode morrer ou pode recuperar, simplesmente não sabemos. Uma das formas de lidar com a instabilidade emocional é compreendermos a importância da esperança. Sem esperança não há futuro, ela alimenta, fornece energia e uma razão para viver, quer para nós quer para o nosso filho. Há sempre algo para ter esperança. No início da doença, temos esperança de que o nosso filho melhore rapidamente. Se a doença se agrava, temos esperança de que ele não morre. E se nada mais se puder fazer, temos esperança de que o nosso filho possa morrer com dignidade e sem dor.
Foi sobretudo nas alturas de maior tensão e angústia que me aproximei dos outros pais. O apoio que dávamos uns aos outros, a proximidade que sentíamos por vivermos a mesma experiência, os “argumentos de esperança” que usávamos para apoiar os outros, acabavam muitas vezes por funcionar para nós próprios e servir de alavanca para a minha força e conforto para a minha dor.
Há dias em que perdemos completamente a esperança. É muito difícil viver com filhos doentes, com o pavor da morte, com os efeitos secundários do tratamento e muitas vezes com uma vida familiar em ruptura, mas devemos acreditar que a esperança voltará.
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